A mandioca é um dos principais gêneros agrícolas produzidos no Baixo Sul da Bahia, tendo grande importância tanto econômica quanto sociocultural. Em 2016, ela ocupava 80,4% das terras cultivadas com lavouras temporárias na região, tendo gerado uma produção calculada em mais de 43 milhões de reais. Com tamanha produção, derivados da mandioca como farinha, beiju, puba e goma estão fortemente presentes na dieta da população local.
Além disso, o cultivo e beneficiamento da mandioca, desde o trabalho em comunidade realizado nas casas de farinha (quase sempre envolvendo contação de histórias e estórias) e as longas jornadas até as feiras para a comercialização do produto, permeiam a memória coletiva dos moradores do território. Mas muitas vezes não nos damos conta de como a importância econômica, social e cultural da mandioca no Baixo Sul da Bahia tem raízes antigas.
Desde o período de conquista e início da colonização do território que hoje chamamos de Brasil pelos europeus, no século XVI, a mandioca (que era uma planta nativa do continente americano) foi sendo amplamente incorporada à dieta da população. Em muitas regiões, como na Bahia, a farinha de mandioca constituía a base da alimentação e era consumida por todos os grupos sociais: pessoas escravizadas e os chamados “livres pobres” até as altas classes da sociedade.
A ampla difusão do consumo de derivados da mandioca, principalmente da farinha, criava uma grande demanda pelo produto, fazendo com que o Estado intervisse diretamente sobre a sua produção. Entre os séculos XVII e XIX foram promulgadas uma série de medidas que visavam regular o plantio de mandioca e garantir o fornecimento de farinha. Isso porque, embora a farinha não fosse um gênero destinado à exportação, ela era muito relevante para o abastecimento das cidades e como suporte ao desenvolvimento de outras atividades econômicas, como a produção açucareira.
Em virtude disso, aos poucos, houve a formação de zonas especializadas no cultivo de mandioca. Na Bahia, as vilas de Cairu, Boipeba e Camamu, que, em linhas gerais, deram origem aos municípios que compõem o Baixo Sul, estavam à frente de produção mandioqueira. Por uma série de fatores, como a qualidade do solo, o clima e a geografia da região, adequados ao cultivo da mandioca e com fácil acesso às áreas mais populosas onde havia grande demanda por alimentos, como o Recôncavo e Salvador, essas vilas foram designadas para o plantio exclusivo de mandioca, sendo que era proibido o cultivo de cana-de-açúcar, tabaco e até mesmo a criação exclusiva de animais.
Na maioria dos casos, a produção de farinha de mandioca no Baixo Sul envolvia o emprego de mão de obra escrava. Esse dado é relevante, porque o emprego de mão de obra escrava é comumente associado a outras atividades, como o trabalho nos engenhos. Em meados do século XIX, 78% dos indivíduos que cultivavam mandioca em Valença possuíam, pelo menos, um escravo.
Estimativas apontam que em um terreno já limpo, um roceiro, trabalhando na companhia de um escravo saudável, podia, no prazo de um mês, preparar e plantar dez mil covas de mandioca, as quais poderiam lhe render até quatrocentos alqueires de farinha. No entanto, a média de alqueires de farinha por cova plantada podia variar de acordo com a qualidade dos solos e variações no clima (secas ou chuvas excessivas).
No século XIX, a produção de farinha poderia ocorrer em engenhos ou casas específicas destinados a este fim, ou em cômodos anexos às moradias dos senhores, conforme as condições financeiras dos indivíduos. Os instrumentos ali existentes costumavam ser, via de regra, uma moenda, na maioria dos casos movida por uma roda d’água, e um alguidar de ferro ou cobre.
As medidas que visavam garantir o plantio da mandioca, e a importância que a farinha tinha para a alimentação da população, fizeram com que a produção agrícola dos territórios que vieram a compor o Baixo Sul se voltasse principalmente para o cultivo do tubérculo. Em meados do século XIX, 53,6% dos sítios e fazendas em Valença plantavam mandioca, destinada a abastecer principalmente os mercados das cidades de Nazaré, Santo Amaro e Cachoeira, no Recôncavo.
Autora: Silvana Andrade dos Santos. Graduada em História (UNEB), mestra e doutora em História em Social (UFF), pós-doutoranda (USP).
Um Império de Ervas, Madeira, Farinha e Indústria ao Sul da Bahia
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Projeto conduzido pelo Grupo de Pesquisa NEABI do IF Baiano (CNPq), sob coordenação das docentes Dra. Nelma Barbosa e Ma. Scyla Pimenta, no âmbito do curso de Especialização em Relações Étnico-Raciais e Cultura Afro-brasileira na Educação (REAFRO) e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (IF Baiano Campus Valença).
Contato: nelma.barbosa@ifbaiano.edu.br