Baixo Sul da Bahia: Território, Educação e Identidades

Morro de São Paulo: adversidades e resistências históricas

O Morro de S. Paulo está localizado no extremo norte da Ilha de Tinharé, uma das três ilhas que compõem o município de Cairu (Tinharé, Boipeba e Cairu), na Bahia. Administrativamente o povoado pertence ao distrito de Gamboa, constituindo-se a sua maior povoação. A ilha de Tinharé mede 22 km de norte a sul e 18 km de leste a oeste, com relevo do tipo planície costeira. O povoado dista de Salvador 30 milhas náuticas e de Valença, 10 milhas.

Mapa 1: O Morro de São Paulo no Litoral Baiano.

A enseada do Morro de São Paulo transformou-se ao longo da história numa espécie de zona franca, frequentada por piratas e contrabandistas, cujo acesso era facilitado, devido principalmente, a dificuldades de fiscalização por parte da coroa portuguesa. Os holandeses, comandados por Johan Von Dortt, ali estiveram antes de tomar Salvador, em 1624. Um ano mais tarde, abrigou-se no local a numerosa armada de Boudewijh Hendricszoon, que, ao saber da reconquista de Salvador pelos portugueses, rumou para o norte. Em 1630, temendo novos ataques à capital, o Governador Diogo Luís de Oliveira determinou a construção no local, de um forte destinado à defesa do Recôncavo. O forte foi ampliado em 1739 por D. Vasco Menezes. No final do mesmo século a fortaleza já se encontrava decadente e arruinada. Mas sua posição estratégica fez com que o Almirante Lord Thomas Cockrane a elegesse, em 1823, como base de operações da primeira esquadra brasileira antilusa, no âmbito das lutas pela Independência.

Figura 1: Fortaleza do Morro de São Paulo, monumento nacional protegido pelo IPHAN (Fonte: patrimônio.org)

Durante os séculos XVII e XVIII, a região de Tinharé tornou-se um importante centro de produção de farinha e materiais de construção (madeira, telhas, etc). A decisão de fortificar o canal de Tinharé passava também pela preocupação em manter o abastecimento da cidade de Salvador e escoamento da produção regional. No século XIX, o Morro de São Paulo experimentou uma profunda crise, consequência, dentre outros fatores, da concorrência com outras regiões produtoras. A partir da segunda metade do século passado, o povoado passou a atrair um número crescente de veranistas, movimento que aumentou de forma considerável nos últimos anos.

Com uma fortaleza que serviu de proteção a uma das portas de entrada do Recôncavo baiano ao longo dos séculos, o Morro de São de Paulo ressurgiu na Segunda Guerra como local estratégico de guarnição da costa brasileira. Ali foi instalado um posto de radiotelegrafia, enviado um contingente fixo da Marinha, além de o movimento de navios naquelas águas ter se tornado algo rotineiro.

O povoado guardava especificidades que merecem destaque. Além da sua localização e do fato de os moradores viverem exclusivamente da pesca e esta ficar sumariamente comprometida na época da guerra, a população nativa viveu intensamente as consequências mais dramáticas do conflito. Um fato que marcou a vida dos baianos em geral, e mais profundamente os moradores do povoado do Morro de S. Paulo foi o afundamento dos navios “Itagiba” e “Arará”.

No dia 17 de agosto de 1942, ao sul do Morro de São Paulo, a aproximadamente 13 milhas da costa, os navios foram atacados pelo submarino alemão U-507 e afundaram rapidamente. Dos sessenta tripulantes do “Itagiba” nove pereceram, e dos 121 passageiros trinta desapareceram. No “Arará” 20 dos 35 tripulantes pereceram. Os náufragos começaram a chegar em baleeiras na povoação, causando pânico aos seus moradores. Depois de socorridos, vestidos e alimentados foram deslocados para Valença onde receberam tratamento médico.

Figura 2: Náufragos do navio brasileiro “Itagibá” em frente ao Clube dos Operários de Valença – Recreativa. As vítimas faziam parte do 7o Grupo de Artilharia de Dorso, sediado no Rio de Janeiro. (FALCÃO, op. cit., p. 162).

A guerra foi indisfarçadamente implacável com os moradores do Morro de São Paulo. O pesadelo, vivido e imaginado por essas pessoas, teve uma dimensão própria. Nessa perspectiva, a busca pela sobrevivência foi uma constante, conduzindo a uma série de atitudes, tais como a procura de alternativas de trabalho e o reforço das tradições, principalmente a religiosa. É importante salientar que a solução dos problemas locais esteve a todo instante relacionada com a capacidade de os nativos de estabelecer relações e parcerias. As adversidades trazidas pela conjuntura da guerra foram naturalmente coletivizadas, assim como a busca por novas alternativas que garantissem a sobrevivência, um patrimônio comum a todos no povoado.

Nas últimas décadas do século passado, o Morro de Paulo experimentou um forte processo de transição urbana: o grande fluxo de turistas determinou modificações significativas nas configurações do seu sítio urbano. Crescimento desordenado de casas, pousadas, hotéis, quase sempre desacompanhado de políticas de ordenamento, impactaram as relações sociais, a cultura local, o meio ambiente. Hoje, diante das adversidades que acompanham o cosmopolitismo capital, tão franqueado como alavanca para o progresso do lugar, os morrenses experimentam outros desafios. Diferentes em forma e conteúdo daqueles do passado, mas tão grandes quanto! Problemas estruturais desafiam a sobrevivência e expõem um dilema cotidiano: como crescer sem destruir? Como prosperar preservando? A resposta talvez, assim como no passado, esteja na capacidade que os seus moradores tiveram de coletivizar os problemas e resolvê-los também em conjunto. Contrariando o princípio norteador de uma ética capitalista nefasta, predatória e dominante, que aposta todo o seu sentido no individualismo como moeda de valor e prosperidade, a mitigação dos (graves) problemas que atingem o Morro de Paulo parece passar, sobretudo, pela retomada dos fundamentos éticos que fizeram desse lugar um ambiente resiliente às adversidades.

Por: Augusto César M. Moutinho, Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (2001). Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia – UNEB (Campus XV). Tem experiência nas áreas de História Social e Cultural – com ênfase em História Regional – e Ensino de História. Desenvolve estudo acerca das Relações de Gênero no Brasil do século XX. Está vinculado, como pesquisador, ao Grupo de Pesquisa Obsul: Observatório de Pesquisa e Saberes Socioterritoriais do Baixo Sul da Bahia, do IF Baiano.

Quer saber mais?

CAMPOS, J. da Silva. Fortificações da Bahia. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1940 (Publicações do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

FALCÃO, João. O Brasil e a 2ª Guerra: testemunho e depoimento de um soldado convocado. Brasília: UnB, 1999.

MOUTINHO, Augusto César M. A sombra da guerra: o medo e a sobrevivência em um povoado baiano durante a Segunda Guerra Mundial. Salvador: Quarteto Editora, 2005.

SAMPAIO, Consuelo Novais. A Bahia na Segunda Guerra Mundial. Revista O Olho da História. Salvador: Oficina Cinema-História, nov. 1995.