Certificado pela Portaria n° 7, de 19 de abril de 2005 e constituído por dois troncos familiares: Rosário e Assunção, o Kilombo de Boitaraca está localizado no território de identidade do Baixo-sul da Bahia, especificamente, a partir das informações técnicas fornecidas pela AMUBS², a 22 km da sede do município de Nilo Peçanha, próxima ao Rio dos Patos, Costa do Dendê – região litorânea assim intitulada, devido aos municípios de Cairú, Camamu, Igrapiúna, Ituberá, Maraú, Taperoá e Valença que fazem limite com a cidade de Nilo Peçanha, os quais, devido à indústria OPALMA, localizada na cidade de Taperoá, exportam grande quantidade de produtos derivados do dendê.
O trato com o dendê (Elaus guineeusis), da família das palmáceas originária do oeste da África, especificamente da Guiné, consta nos relatos dos primeiros navegadores, como parte integrante da paisagem e da cultura popular de África, desde o século XV. Ao ser introduzido no continente americano pelo comércio de escravizados, chegou à região nordeste do Brasil durante o século XVII, adaptando-se bem ao clima e ao solo da região sul e sudeste da Bahia. Para as populações negras o “lidar” com o dendê sempre foi uma das atividades realizadas pelos mais velhos. Uma atividade passada de mãe para filha, que servia como trocas de saberes, de sustento, como também estratégias de organização de fuga. No momento em que as diversas famílias se reuniam para “macerar”, “amassar” e “pilar” o dendê, vínculos sociais se constituíam para fortalecer as possíveis conjurações que estouravam nos interiores dos engenhos, como forma de luta contra o sistema colonial. Neste contexto de heranças africanas, do pilar o dendê à compilar as ideias de luta contra o sistema colonial, encontramos o Kilombo de Boitaraca, com 50 famílias, que somam 200 pessoas entre adultos e crianças, situado dentro dos contornos da Área de Proteção Ambiental do Pratigi, um espaço no qual predomina a Mata Atlântica, envolvendo 160 hectares de terra, que abrange um total de cinco municípios, sendo estes: Ibirapitanga, Piraí do Norte, Igrapiúna, Ituberá e a cidade de Nilo Peçanha.
A cidade de Nilo Peçanha tinha como principal fonte econômica o cultivo da mandioca, dendê ou a produção de farinha, em menor escala, o plantio da cana de açúcar, sendo a agricultura de subsistência a principal atividade de sua pequena população. Apesar de apresentar-se como um tímido fabricante de açúcar, a cidade de Nilo Peçanha viu florescer em seu perímetro urbano um pequeno engenho, nas terras da fazenda Mutumpiranga, cujas ruínas sobrevivem até hoje, marcando a memória e a história do lugar. Vale salientar, que pela proximidade a cidades, nas quais a influência de etnias indígenas era marcante, os lugares em Nilo Peçanha ganha diversos nomes de origem Tupi, a exemplo do rio Mutumpiranga, mutum significa ave, piranga significavermelho, “ave vermelha”. Uma espécie rara que havia em grande quantidade nas terras da fazenda do Sr. Joaquim Gomes Machado. Um fazendeiro, segundo relatos dos boitaraquences, rico e muito conhecido por seus “requintes” de crueldade com a população negra escravizada em sua fazenda.
Podemos constatar que a ocupação territorial do Baixo Sul da Bahia, remonta aos primórdios da colonização brasileira. Assim, para compreendermos a formação do município de Nilo Peçanha, é necessário incluir os processos ocorridos no percurso da capitania dos Ilhéus onde estavam as Vilas de Camamu e Cairu, analisando a que região pertencia a Vila de Cairu, a qual teve seu território desmembrado com a emancipação dos municípios de Nilo Peçanha e Ituberá, mas que também trouxe fatores os quais contribuíram para a formação econômica, política, social do município de Nilo Peçanha, principalmente, para a formação de sua população. Uma população de raízes Kongo-Angola observado no seu legado histórico, no modo de viver, nos vínculos sociais construídos entre eles/as, nas marcas lexicais de influência Kikongo e nas manifestações culturais com a utilização de máscaras como é o caso do Zambiapunga ocorridas nesta cidade. É possível percebermos que o Baixo Sul, geograficamente, foi favorável a rotas de fuga devido a sua densa vegetação, vazio populacional, farta em alimentos advindos da caça, pesca e mariscagem.
Desta forma, aproveitando uma região despovoada e pouco guardada, os escravizados formariam mocambos, desde pelo menos o século XVII em Camamu, Cairu e Ilhéus. Houve o desembarque ilegal de africanos ocorrido na Baía de Camamu, especificamente, em Taipús. Imediações de Barra Grande de Camamu foi um local utilizado para a “desova” de africanos/as contrabandeados/as. Uma informação que confirma que neste espaço territorial, várias foram as estratégias de luta utilizadas pelos escravizados/as em prol da conquista de sua liberdade.
Com o auxílio da memória dos boitaraquences e dos documentos que dialogam sobre o histórico de Boitaraca, podemos compreender que esta comunidade se formou em meados do século XVIII, coexistindo através da força da palavra e do tradicional extrativismo da piaçaba. Segundo os relatos dos/as porta-vozes boitaraquences, ou também chamados como os/as guardiões/guardiãs da palavra, o nome Boitaraca é uma corruptela da palavra Mbaétaraca, termo que faz parte do tronco linguístico da etnia indígena Tupi e significa lagarta voadora, borboleta de cor azul cambiante, uma espécie rara, com cores azuladas matizadas, que aparecia no kilombo durante os meses de setembro a dezembro, período que corresponde a primavera.
Para compreender o espaço que compõe Boitaraca é preciso considerar este espaço como um território em que se desenvolvem emoções humanas. Um território, em que práticas sociais e culturais são vivenciadas todos os dias, na forma de arrumar suas casas, na maneira de se relacionar com os/as integrantes da comunidade, de plantar e colher a piaçaba, na maneira de educar suas crianças, ou na maneira como os/as Contadores/as de história, as rezadeiras, os trabalhadores do sisal – “apanhadores”, “catadeiras”, moradores locais tem um papel importante na comunidade de Boitaraca: transmitir suas tradições culturais expressas nas cantigas que embalam os sambas de roda, na Dança da Velhinha, no “Enterro do Ano Velho”, no ritual da “Queima das Palhas”, quando se recolhe o presépio natalino, uma festa de tradição escrava, comemorada à base de licor, mungunzá e bolo, festividades presentes também no Tríduo de Santo Antônio e no ritual das Cinzas na Quarta-feira Maior. Estes/as são sujeitos/as históricos/as, descendentes de uma herança africana na diáspora, portadores/as de uma identidade que expressa em sua vivência a singularidade de uma população dentro de uma nação plural, contam uma história a partir da memória da população local, nas suas lembranças, na representação do seu imaginário, investigado nos silêncios e nas reticências das falas colhidas em entrevistas e depoimentos, e na análise de imagens de suas festas religiosas.
¹ A opção em utilizar a letra “k” para a grafia da palavra Kilombo é para enfatizar a origem deste termo que é bantu. E na grafia das línguas do grupo bantu não existe palavras que comecem com “qui” (FERNANDES, 2020, p. 22).
² Relatório técnico da AMUBS – Associação dos Municípios do Baixo Sul da Bahia. Cairu, Camamu, Igrapiúna, Ituberá, Maraú, Nilo Peçanha, Piraí do Norte, Presidente Tancredo Neves, Taperoá e Valença. Pasta de Comunidade kilombolas do Baixo Sul. S/n.
Por: Mille Caroline Rodrigues Fernandes ‘Makyesi’. Pós-Doutoranda em Educação (IEA/USP). Doutora em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc/UNEB), com Doutorado Sanduíche no Instituto Superior de Ciências da Educação-ISCED/Luanda, como bolsista PDSE/CAPES. Formada em Pedagogia. Professora de História da África no Ensino Fundamental II do Município de Nazaré/BA. Professora Colaboradora no Departamento de Línguas e Literaturas Africanas-ISCED/Luanda; da Cátedra UNESCO de Estudios Afro-Andinos de la Universidad Andina Simón Bolivar (UASB/Quito) e da Universidad Nacional de Mar Del Plata (UNMDP/Argentina). Pesquisadora do Grupo Memória da Educação na Bahia (PROMEBA/PPGEduc/UNEB), do Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Currículo e Pedagogias Decoloniais (GFPPD/UNIRIO) – partícipe da Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras (RECEN) vinculada ao Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), e do Grupo de Pesquisa Cyberxirè: Redes Educativas, Juventudes e Diversidade na Cibercultura (UESC). É membra e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros em Línguas e Culturas (NGEAALC/UNEB). E-mail: millecaroline@hotmail.com.
COMUNIDADE QUILOMBOLA BOITARACA
FERNANDES, Mille Caroline Rodrigues. MBAÉTARACA: uma experiência de educação de jovens quilombolas no município de Nilo Peçanha/BA. 220f. Dissertação (Mestrado em Educação e Contemporaneidade) – Universidade do Estado da Bahia – UNEB/CAMPUS I, Salvador, 2013. Disponível em:
https://formacce.ufba.br/sites/formacce.ufba.br/files/dissertacao_mille_caroline_rodrigues_fernandes.pdf. Acesso em: 17 de março de 2023.
FERNANDES, Mille Caroline Rodrigues. De Angola à Nilo Peçanha: traços da Trajetória Histórica e da Resistência Cultural dos Povos Kongo/Angola na Região do Baixo Sul. 260f. Tese (Doutorado em Educação e Contemporaneidade) – Departamento de Educação, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.cdi.uneb.br/site/wp-content/uploads/2021/03/MILLE-FERNANDES-2020-REVISADO-SEM-MARCAS-RETORNO-05-de-marco-de-2021-1-1-compactado.pdf. Acesso em: 17 de março de 2023.
FERNANDES, Mille Caroline Rodrigues; PEREIRA, Luciano da Silva. Virada Curricular no Mato Grosso e na Bahia: Alternativas Pedagógicas com os Kilombos nossa Senhora Aparecida do Chumbo e de Boitaraca. Revista Interinstitucional Artes de Educar: “Dossiê Outras educações: saberes e conhecimentos das populações racializadas em contextos de re-existência”. Rio de Janeiro, V. 8, N. 2 – p. 383-405. Maio-ago de 2022 – DOI: 10.12957/riae.2022.66469. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/article/view/66469/43366. Acesso em: 17 de março de 2023.
FERNANDES, Mille Caroline Rodrigues. Ancestralidade africana na gramática formal de ensino: reflexões sobre a influência do aumento da língua kikongo no português falado no recôncavo e baixo-sul da Bahia. Revista ReVEL, v. 19, n. 37, 2021. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/dcfd44776c46d09dcc8d4c39726b4050.pdf. Acesso em: 17 de março de 2023.
Projeto conduzido pelo Grupo de Pesquisa NEABI do IF Baiano (CNPq), sob coordenação das docentes Dra. Nelma Barbosa e Ma. Scyla Pimenta, no âmbito do curso de Especialização em Relações Étnico-Raciais e Cultura Afro-brasileira na Educação (REAFRO) e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (IF Baiano Campus Valença).
Contato: nelma.barbosa@ifbaiano.edu.br