A faixa de 50 léguas de terras que compreendia a doação da capitania feita por D. João III ao capitão donatário Jorge de Figueiredo Corrêa era ocupada por povos falantes de línguas Tupi e encontravam-se espalhados por todo o litoral da capitania no contexto das primeiras tentativas de colonização desta área. Para o sertão, entenda sertão como uma área pouco habitada e que não necessariamente era distante do litoral, existiam grupos, genericamente chamados Tapuias, de diversos idiomas e etnias, mas o nosso conhecimento sobre sua variedade cultural é muito menor do que gostaríamos devido à limitação das fontes, suas características culturais e a política destinada pela Coroa a esses grupos, levando muitos povos a serem exterminados antes menos que houvesse algum registro sobre sua historicidade.
Dentre os inúmeros grupos que habitavam a capitania de Ilhéus, um em especial ainda tem seus etnônimos e sua história ligados à barbárie, ignorância, destruição e decadência da capitania dos Ilhéus. Mas de que grupo indígena estamos falando? Dos índios Guerém/Aimoré. Em relatos como os de Fernão Cardim, Gabriel Soares de Souza e Pero Magalhães de Gândavo, os Guerém são descritos como “coisas” incapazes de manter suas formas tradicionais de ocupação e exploração das terras que habitavam. Essa noção reforçava a ideia de que os povos indígenas eram empecilhos aos projetos de consolidação da colonização. Para que esse problema fosse solucionado, era-lhes imposta pelos colonizadores sua inclusão nos padrões da sociedade dominante, através dos aldeamentos, ou eram enquadrados como objeto de Guerra Justa.
Com raras exceções, ainda hoje prevalece na historiografia oficial de Ilhéus essa perspectiva sobre esses grupos. Assim as relações de contato são sempre de grupos com os quais só se poderia conviver através da dominação. Nesse sentido, prevalece sobre os Guerém a visão dos índios que tiveram, dada sua braveza, que ser dominados, aculturados, e que não esboçaram reação em defesa de sua cultura e vidas, sendo destroçada pelas autoridades, colonos e religiosos, não se constituindo, pois, categorias merecedoras de maiores investigações. Nossa perspectiva, entretanto, considera que esse grupo procurou tecer novas identidades, as quais, de um lado, tendiam a se afastar das classificações “bestializadas”, buscando novas configurações étnicas e sociopolíticas, permitindo-lhes de um lado articular-se ao projeto colonizador, como aliados, e de outro conseguir, em meio à sociedade colonial, resguardar a sua autonomia, paradoxalmente através desta colaboração.
No que diz respeito a suas características sociais, esses grupos tinham tendência ao fracionamento constante. Essa particularidade proporcionou que inúmeros pequenos grupos se formassem, refugiando-se numa área tão extensa, que permitiria facilmente serem caracterizados com um contingente demográfico bem mais numeroso do que realmente era. Eles viviam das atividades de caça, coleta e pesca. A caça constituía-se numa das suas atividades econômicas mais importantes, sendo exercida pelos homens comunitariamente e, quando os produtos abundavam, o consumo também se fazia em grupos, com a participação dos membros da comunidade. Aponta-nos Paraíso (1998) que a agricultura foi, possivelmente, uma atividade adquirida a partir do contato estabelecido com os colonizadores, daí a insistente recusa ao sedentarismo do grupo nos aldeamentos iniciais da colonização.
Longe de ser um grupo social conservador, amarrados à tradição milenar, perspectivamos que desempenharam um papel ativo e criativo diante dos desafios postos pelo avanço da colonização.
Por: Rafael dos Santos Barros, licenciado em História (UESC), mestre e doutor em História Social (UFBA), professor no Colégio Idelzito Eloy de Abreu, Ituberá (Secretaria de Educação Bahia).
Indígenas e Africanos no Baixo Sul Revoltas, Escravidão e Liberdades
BARROS, Rafael dos Santos. Protagonismo indígena: arranjos e conflitos nas sesmaria dos Jesuítas. Feira de Santana: UEFS Editora, Ilhéus, BA : Editus, 2022. 272. (Selo Sertão Sul). ISBN 97885745555126 (UESC)
MOREL, Marco “Cinco imagens e múltiplos olhares: “descobertas” sobre os índios do Brasil e a fotografia do século XIX”. História, ciência, saúde – Vol. 8, p. 1039-1058. Rio de Janeiro, 2001 . disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/fb47BLQGwJCkCVmtFpDwQ6H/?format=pdf&lang=pt
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho. A conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste. 1998. 5 v. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998
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SOUZA, Telma Mirian Moreira de. Entre a cruz e trabalho: a exploração da mão de obra indígena no sul da Bahia (1845-1875). 2007. f. 237. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
Projeto conduzido pelo Grupo de Pesquisa NEABI do IF Baiano (CNPq), sob coordenação das docentes Dra. Nelma Barbosa e Ma. Scyla Pimenta, no âmbito do curso de Especialização em Relações Étnico-Raciais e Cultura Afro-brasileira na Educação (REAFRO) e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (IF Baiano Campus Valença).
Contato: nelma.barbosa@ifbaiano.edu.br